quinta-feira, 22 de maio de 2008

A rapariga da camisola lilás

A rapariga da camisola lilás chora.
Chora sem lágrimas.
chora por dentro,
como se o rio que cava sulcos na terra
explodisse dentro dela,
com a força de quem esteve preso mil anos.
Consigo ver, dentro dela, as vagas que recebem este filho perdido,
e as flores que ela deixou morrer
em momentos de terna loucura.
Consigo ver como os punhais a atravessam
e como ela sangra...

A rapariga da camisola lilás grita.
Grita sem se ouvir.
Grita com os gestos que a vestem de negro,
com os olhos enlutados, marca brutal
de uma guerra travada à flor da pele,
sem tréguas,
sem quartel,
sem vencedores.
Ela não tem nada do que um dia ousou viver.

A rapariga da camisola lilás desespera.
E está só.
Repousa no escuro, no fundo do mar,
onde se deixa enredar
por paredes de silêncio azul e castelos
de papel de cartas de amor,
enrugadas e amareladas, tristes como ela...
E enquanto a poeira dos dias vai assentando sobre a arca dos sonhos
ela vai-se deixando cair por entre as flores murchas
e as estrelas que se apagam...

A rapariga da camisola lilás morre.
Não morre, vai morrendo,
no embalar do movimento da terra
com as marcas de silêncio que lhe demos, palhaços inconscientes.
Ela morre,
e nós morremos um pouco com ela.

quarta-feira, 14 de maio de 2008

(sem título #3)

Na noite de Janeiro,
enquanto pairávamos sobre as águas,
abriste o meu peito.

A tua mão sarou.
Os teus olhos cobriram-me de flores.
O teu corpo derramou
ternura
sobre o meu cadáver de amor.

No teu beijo
sinto
que nada morrerá.

domingo, 11 de maio de 2008

(sem título #2)

No primeiro banho depois da morte
sonhei que as ervas doces do amanhecer
me acariciavam o rosto.
Trinquei o fruto que é chama
de desilusão,
e com os olhos desenhei nas brumas
o nome que ouço alguém gritar quando
as fadas se escondem.
Tranquei o meu corpo num caixão
de chamas, para não mais
me chorar nos dias de sol.
O que restar do mundo será a minha prisão.

segunda-feira, 5 de maio de 2008

O vício

Sabes bem que não te perdi.

Queimei todas as palavras, e as paisagens,
mas não posso queimar a memória.

Tardo em deixar o vício
de te sentir.

sexta-feira, 2 de maio de 2008

(sem título #1)

Vivem tempestades em teus olhos.

Consigo ver as suas marcas em sulcos
cavados no teu rosto.

Não há consolo para o peito ferido.

Escolhes a imensidão do vazio;
adoptas na pele a aridez do deserto.
As mãos já não sentem o frio gelar
os lobos que vivem no teu sangue.

O silêncio será a tua prisão.